MIUT 85K 2018 2/2

5h30 da manhã já pouco se dormia, ao fundo ouvia-se água a correr, alguém já estaria a tomar banho pensei eu, ou isso ou era o ribeiro que passava ali ao lado? Nem uma nem outra, chovia torrencialmente. Acho que nas nossas cabeças todos os cenários tinham sido considerados menos aquele. Lá fomos de carro para a partida sob chuva intensa e logo que começamos a subir a estrada do dia anterior percebemos que nos tínhamos equivocado, os autocarros estavam todos logo ali estacionados junto a uma escola era só atravessar a estrada, parece que aqueles 3 Km a pique até à Fajã do Rodrigues teriam que ser mesmo feitos a correr, a chuva é que não dava tréguas.
Bom, mesmo em cima da hora de partida todos começaram a alinhar-se a atrasar ao máximo o inevitável molhar-se. O speaker animado e optimista dizia que a chuva era apenas por uma hora. Já com alguns minutos de atraso foi dado o tiro de partida e começava ali a esperança de muitas horas de treino, aquela hora não sabia mas a chuva e frio que se fez sentir durante a noite provocou baixas a quem fazia a prova rainha e fez o mesmo aos atletas dos 85K por outras razões pois a esse nível fomos muito mais poupados. E lá fomos nós Serra acima serpenteando em direcção à Fajã do Rodrigues mas agora ao contrário do dia anterior a correr embrenhado no pelotão com o dia a nascer, a neblina formada no topo da serra e o barulho ensurdecedor do ténis somados pelos bastões batendo contra o chão iluminados pelos frontais acompanhados pelas luzes vermelhas de presença rasgando a neblina densa. O destino era a Encumeada, entrados no trilho avançou-se em bom ritmo mas sempre controlado por levadas e veredas, com algumas escadas a apresentar o mais comum obstáculo do dia. Só fomos chamados atenção quando se começou de novo a descer e as escorregadelas na lama recordavam que uma queda podia deitar tudo a perder. Ainda frescos e chegados ao primeiro abastecimento assustei-me com a presença do Ricardo Silva Edv Viana logo à porta do abastecimento e pensei que a noite não teria perdoado e ele teria sido uma das vítimas (depois recordei-me que ele estaria lesionado) havíamos de nos encontrar mais tarde no Poiso. No abastecimento alimentei-me o melhor que pude essencialmente sólidos pois o pequeno almoço tinha sido fraco, consequência de estar deslocado e não saber com o que ia contar. Não nos demorámos muito e saímos sempre a descer até começar a subir e muito lado a lado com o famoso tubo verde encarregue de levar água para refrigerar a central eléctrica. Aí teve lugar um apontamento de humor, durante a subida um dos atletas que eu seguia por sinal Madeirense com uma loja de fruta atendeu o telemóvel e durante a conversa respondeu que estava a fazer uma "caminhada pela serra". Juro que quem ouviu soltou uma gargalhada daquelas com vontade e convicção que nem Sketch de Ricardo Araújo Pereira. Muito ainda havia de subir de novo e com as escarpas que nos rodeavam em todo o seu esplendor a fazer valer a pena todo o esforço, ansiedade e nervos para poder ali estar. Acreditem que quem aprecia a montanha não pode deixar de ter a Madeira na sua lista das coisas mais importantes a visitar. Depois da longa descida próximo da chegada ao Curral das Freiras um rosto familiar, o João Mata subia a serra ao nosso encontro, há bebidas isotónicas, barras energéticas, cafeína mas nada iguala um rosto amigo que dá valor ao que estamos a fazer e nos incentiva naquilo que nos propomos e ainda nos acompanha. Tiramos a foto para mais tarde recordar, conversamos durante a descida sobre o que já tínhamos feito e o que faltava fazer, hidratar bem, comer bem pois a seguir ao Curral da Freiras esperava-nos o quilómetro Vertical para atingir o Pico Ruivo. Despedimo-nos do João seguimos com a promessa de nos revermos mais tarde e seguimos até ao abastecimento no Curral das Freiras onde chegamos à hora de almoçar. Comi bem e fizemo-nos demorar propositadamente, muni-me de sólidos, 2 litros de líquidos não vá secar na longa subida agora que o sol aquecia bem e à saída do abastecimento a revista surpresa do material obrigatório ainda nos fez demorar mais. Original fazer a verificação de material a 1/3 da prova, o que aconteceria se não o tivéssemos? Bem, depois da espera lá conseguimos sair do Curral das Freiras e enfrentar um quilómetro vertical com o sol a bater forte e a temperatura a subir. Ao longo da subida deu para reparar nos casais estrangeiros que faziam os 115 Km e elas em melhor condição física a puxar por eles, no percurso um grupo de inglesas que descendo apoiavam efusivamente os atletas com quem se cruzavam e responderam-me que lá em cima estava bastante frio. Estava mesmo, a chegada ao Pico Ruivo foi feita sob vento, frio e nevoeiro e o abastecimento apesar de aquecido por lareira e um café que entornaram sobre mim estava tão concorrido que não convidava a grandes demoras sentei-me um pouco nas escadas a ganhar alento e assim que estávamos prontos arrancámos em direção ao Pico do Areeiro. O percurso é feito de escadas escavadas nas rochas, escadas metálicas, escadas metálicas com degraus em falta ou danificados, túneis tão longos que obrigam à utilização de frontal e paisagens tão lindas como perigosas um passo em falso, uma queda e... mais vale nem pensar nisso. A dada altura ao longe já era possível vislumbrar o grande globo branco do Pico do Areeiro iluminado por um belo céu azul e sol que nos permitia aquecer de novo, salvo quando virávamos a norte e o vento frio soprava forte não vá alguém esquecer-se que está em montanha. Durante os meses de preparação da prova fui dizendo sempre a mim mesmo só quero chegar até ao Pico do Areeiro, tudo o que vier daí para a frente é ganho. E é verdade esta parte do percurso é um sonho em que só acordamos devido à brutalidade de escadas que tem e persistem ao longo de toda a prova. Fotos da praxe tiradas, chegamos ao Pico do Areeiro e sentia-me muito bem, para o abastecimento no Chão da Lagoa ainda faltavam alguns quilómetros e quase sempre a descer por trilhos, escadas e estradão fui pensando na muda de roupa e na forma como iria encarar o resto da aventura. Chegado ao Chão da Lagoa tive a sorte de sentar-me entre duas mesas onde conseguia de um lado alcançar a batata doce e quadrados de chocolate, do outro batatas fritas e um bolo delicioso que ainda estou para saber de que se trata, melhor só se dessem a comida à boca. No saco da mudança de roupa tinha tudo, ténis, T-Shirt, calções ou corsários tudo o que pensei ser necessário caso a noite viesse fria ou mais amena. Acabei por só repor a mochila com o géis e barras que iria precisar, luvas pois a mão direita já incomodava com uma bolha, casa de banho e siga para o próximo abastecimento, o Poiso. Quem conhece dizia-me quando chegares ao Poiso está feito, eu sempre dizia quando chegar ao Poiso se me estiver a arrastar chamo um táxi paro no restaurante mais próximo e como um belo bolo do caco e espetada regional e está feito o MIUT. Mas não, o percurso até ao Poiso foi feito em ritmo mais lento, a começar a acusar os quilómetros mas não era para desistir não havia razões para isso. O ritmo mais lento só seria interrompido por uma paragem técnica que parecia ter tido o efeito de um shot de cafeína e aí corri que nem um desalmado a sentir-me leve e revigorado pelo menos até recuperar o tempo perdido e alcançar um dos companheiros de aventura. No Poiso a noite começava a cair, sentado sobre paletes de garrafas de coca cola para garantir um lugar sentado uma sopa aquecia a alma e a vontade de chegar era enorme na minha cabeça pensava só faltam 25 km. Em condições normais num Trail faz-se em 3 a 4 horas mas ali não estávamos em condições normais e iríamos precisar de cerca de 7h. Foi doloroso descer até à Portela os meus pés já bastante massacrados acusavam todos os impactos ampliados pelos degraus e descidas acentuadas já poucos atletas se vislumbravam no trajecto nesta fase o meu relógio miraculosamente apesar de em modo caminhada ia registando cada vez mais lentamente os quilómetros que passavam e o desnível brutal nunca antes experimentado. Depois da grande descida, começou-se a ouvir grande alarido e luzes estávamos a chegar à Portela mas antes ainda havíamos de ver de novo o João Mata que nos aguardava para dar um pouco mais de incentivo para o que restava da prova, a sua mulher teve de ter uma paciência enorme naquele dia. Na Portela viria a rever de novo o Ricardo Silva Edv Viana acompanhado talvez da sua mulher que iriam prosseguir em ritmo turístico até ao fim, certo é que nunca mais os vi e nem me lembrei de tirar uma selfie com ele. Enquanto descansávamos, as dúvidas começavam a crescer ainda faltavam cerca de 16km, até o meu relógio que resistira heroicamente iria ficar sem bateria ali mesmo. Tudo parecia dizer já chega, enquanto esperava que o powerbank recarregasse o relógio fomos sabendo junto do staff que cronometrava a prova onde estaria o nosso terceiro elemento e íamos vendo o acumular de chips de dorsal de atletas que iam abandonando a prova. Teríamos chegado ao pior momento da prova, seria possível continuar quando tudo indicava o contrário. Este foi o abastecimento onde mais nos demorámos, respondi aos sms de incentivo, dei sinal de vida à família, ouvimos conselhos de quem sabia como estava a restante descida, enlameada, muito escorregadia e sempre encostados à rocha pois a falésia não perdoa. Quando todos estávamos minimamente recarregados, relógio incluído partimos cautelosamente para o restante percurso novamente acompanhados por outros atletas ora mais lentos ora mais rápidos. Deu para confraternizar com um inglês que já era o terceiro ano consecutivo que fazia a prova, deu para perceber que os mais lentos ali respeitam e deixam passar os mais rápidos e finalmente alcançávamos o último abastecimento no Larano. Mais parecia um arraial de uma festa, a hora já ia adiantada dois pedaços do famoso bolo e escadas abaixo virávamos fortemente á direita para pouco depois estarmos entre o mar bem lá em baixo e a encosta aqui era praticamente sempre plano mas a altura impunha respeito só o escuro da noite suavizava a vertigem. Devemos ter acelerado nesta altura pois ultrapassamos alguns atletas até alcançarmos 3 Franceses que fomos seguindo e eles sempre a perguntar se queríamos passar até que eles encostaram para uma paragem técnica. No final da levada do Larano o trilho abandona a beira mar e desce por um vale onde já ansiávamos pela meta e ela nunca mais aparecia, o desespero aumentava quando se via as luzes dos frontais a contornar a serra e ainda sem fim à vista. A levada era traiçoeira com lombas em algumas intersecções conjugadas com os pés cada vez mais pesados e os tropeções garantidos, mas nunca mais chegávamos. As luzes de Machico estavam ali e nós ainda íamos tão alto e a distância já estava feita, mais uma curva, mais uma levada, atravessada a estrada de alcatrão e seguíamos por mais uma levada até que finalmente reconhecemos a praia, a ponte o fórum de Machico, ouvia-se o speaker e alguns resistentes ainda aquela hora a apoiar quem chegava o bom ambiente ainda se mantinha. Objectivo alcançado ás 3 da manhã o impossível foi conseguido 20h04min depois tínhamos chegado à meta, a prova superada mas o esforço ainda havia de continuar pois até para ir onde seria a ceia tínhamos de passar por mais escadas. Só podiam estar a brincar, mas valeu a pena.
Obrigado a todos pelo apoio!

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